2012-10-12

Legendagem (1997)

Veja 05/11/97

Palavras vãs

Sem levar em conta expressões idiomáticas,
legendas de filmes viram piada
Marcelo Camacho
Quem foi ao cinema em tempos recentes já encontrou legendas como as que seguem. No filme Noites Felinas, do francês Cyri Collard, agora em vídeo, a personagem Laura olha o cair da tarde pela janela e dispara, segundo a legenda: "É o cachorro-lobo". O espectador, que não vê nenhum animal na tela, fica desconcertado. Em Assassinato no Orient Express, baseado no livro de Agatha Christie, o detetive Hercule Poirot, vivido por Albert Finney, após meditar sobre a busca do assassino, filosofa: "Tive uma noite de arenques vermelhos". EmQuatro Casamentos e Um Funeral, o galã Hugh Grant, convidado para discursar no casamento de um amigo, dá início a sua intervenção com a frase: "Hoje devo falar de Angus, que não tem esqueletos no armário". Como não se trata de um filme de terror, o espectador fica espantado.
Os exemplos acima dão conta do caso mais comum de erro de tradução em legenda de filme ou vídeo: passar para o português o significado literal de uma expressão idiomática. "Cachorro-lobo", ou "chien-loup", em francês, é uma gíria para crepúsculo  quer dizer que nem é dia, quando o cachorro passeia, nem noite, que é a vez de o lobo dar as caras. "Red herrings", os tais "arenques vermelhos", é uma expressão inglesa que pode ser traduzida para "pistas falsas" ou "boatos". E dizer que alguém tem "skeletons in the cupboard", na Inglaterra, significa que alguém tem algo a esconder. Não são os únicos erros. Outro tipo comum de deslize acontece diante dos chamados falsos cognatos  palavras de idiomas diferentes que são parecidas entre si, mas com significados diversos. É assim que a palavra "actually", que significa "realmente", em geral é traduzida para "atualmente".
Legendar filmes não é apenas conhecer uma língua estrangeira também é controlar o tempo. Na versão original, os personagens conversam na tela e o espectador ouve o que dizem. Na versão traduzida, é preciso ler o que eles falam. Por isso, o trabalho de tradução, no cinema, não exige apenas fidelidade ao texto original. Também implica fazer cortes  pois o tempo que se leva para ler uma frase é sempre maior do que o gasto para ouvi-la. "Traduzir é uma arte zen. Temos de procurar a essência e descartar o que é excesso", diz Monika Pecegueiro do Amaral, uma das profissionais mais prestigiadas no mercado brasileiro e responsável pelas legendas de filmes como A Outra Face, Hércules Força Aérea Um, todos em cartaz. Em O Parque dos Dinossauros, o personagem de Jeff Goldblum dizia, em certo momento, algo como "Sou o doutor Malcolm e esta é a minha noiva, a doutora Sarah Harding. Nós precisamos entrar". Na legenda saiu apenas "Precisamos entrar". Se não fosse assim, explica Monika Pecegueiro, "quando Goldblum terminasse de se apresentar o filme já teria acabado, pois ele teria sido devorado pelo dinossauro". Para traduzir um filme de duas horas são em geral 120 laudas  um profissional ganha, em média, 720 reais. Por um livro de 300 páginas  que, claro, consome mais tempo e idas ao dicionário do que um filme de Schwarzenegger  um tradutor ganha cerca de 4.000 reais.
"Eu tenho netos!"  A pressa, as barreiras de tempo e espaço e os baixos salários não justificam a profusão de erros de legendagem. "Muitos erros acontecem simplesmente porque as pessoas não sabem a língua direito", diz Heloísa Martins Costa, que, ao lado de Monika Pecegueiro do Amaral e Sigismundo da Rocha Spiegel, constitui a tríade dos nomes mais conhecidos desse mercado. No filme Na Companhia de Estranhos, de Cynthia Scott, numa cena passada dentro de um ônibus, uma velhinha diz para a outra: "Não é melhor ligar (turn on) o ônibus?". Saiu na legenda: "Não é melhor virar o ônibus?". Em Os Ladrões, do francês André Téchiné, recentemente exibido nos cinemas brasileiros, Catherine Deneuve, a certa altura, dizia: "J'ai mes petits fils". A tradução foi grotesca: "Eu tenho pequenos filhos", disse a legenda, quando o correto seria "Eu tenho netos".
A entrada, no Brasil, das emissoras a cabo aumentou o mercado de legendagem  e trouxe novos erros, em programas jornalísticos e seriados. Certa vez, no seriado The Nanny, a protagonista recebia um convite para um banho de mar. A acreditar na legenda, dispararia uma pérola de nonsense. "Será que vou ter tempo de me encerar?". Na verdade, o verbo "to wax" significa, em inglês, encerar, mas também "depilar-se". "O descaso da TV é enorme. Tem pronome errado, gente dizendo 'eu lhe amo' ", observa o crítico de cinema Sérgio Augusto. Muitos programas, como os de entrevistas, às vezes são traduzidos de um dia para o outro, caso do jornalístico Entertainment Tonight, do canal por assinatura USA. Nos filmes, a qualidade das legendas na TV por assinatura é melhor. "Introduzimos até uma inovação, que é deixar as legendas por seis segundos na tela, em vez de quatro, o que facilita a leitura", diz Marina Mariz, consultora do canal HBO. "A melhora das legendas na televisão vem contribuindo, com a concorrência, para melhorar as de vídeo, que eram muito ruins."
"Garotas de programa"  Na maior parte das vezes, esse serviço é feito às pressas, às vezes até fora do país. No filme Para Wong Foo, Obrigada por Tudo! Julie Newmar, Patrick Swayze vive uma das três drag queens da história. Parado por um guarda na estrada, explica "We are career girls". E a legenda: "Somos garotas de carreira". Não faz sentido. "Essa tradução foi feita por uma pessoa que mora há muitos anos nos Estados Unidos e não está atualizada com algumas expressões novas do português. Nesse caso, a melhor tradução talvez fosse garotas de programa. Infelizmente, na revisão dessa tradução aqui no Brasil, o erro passou sem ser percebido", explica Gisele Nuzman, da UIP. Muitas distribuidoras entregam seus filmes a empresas que cuidam da legendagem e se recusam a admitir seus erros. Os Ladrões, por exemplo, foi lançado pela Look Filmes, mas teve suas legendas feitas por uma empresa chamada Vídeolar, a verdadeira autora da lambança  e que se recusa a falar do assunto. Já Quatro Casamentos e Um Funeral foi traduzido por Cláudio Fragano, que diz não se recordar dos "esqueletos no armário": "É impossível lembrar, diálogo por diálogo, de uma tradução feita há quatro anos".

Copyright © 1997, Abril S.A.Legendagem

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